Independência, Dependência ou Interdependência
Nestes dias fomos surpreendidos pela declaração de um personagem público de que “filho é um inferno e atrapalha”. Não quero comentar sobre a veracidade ou a sabedoria deste comentário, mas sim sobre como essa declaração é um sintoma nítido de uma condição humana. O fato é que filhos, cônjuges, pais, amigos, relacionamentos, enfim, dão muito trabalho.
Mesmo um olhar rápido ao relato da Queda (Gênesis 3) indica que a raiz da tentação promovida pelo Diabo é que só um relacionamento com Deus não vai satisfazer nosso coração. Curiosamente, vale a pena lembrar que o apelo da tentação (ser igual a Deus) já havia sido concedido quando o homem foi criado à imagem de Deus (Gênesis 1.27). A realidade é que Deus já havia oferecido condições de vida, um mundo perfeito, um relacionamento perfeito e ele mesmo mantinha comunhão com o homem. O sussurro da serpente é que “só” isso não basta. Sua mensagem era que “Deus está te limitando. Na verdade, ele está impedindo você de desenvolver plenamente todo o seu potencial. O melhor a fazer é tornar-se como ele, assim você não dependerá mais dele…”.
Você percebe como essa ainda é a essência da tentação moderna? Mude os personagens, tire Deus e coloque casamento, ou filhos ou mesmo amigos. Pessoas estão te limitando, estão impedindo que você atinja plenamente seu potencial, o melhor é ser autônomo, independente… Com essa linha de raciocínio, casamentos se tornam descartáveis, pais idosos são um peso e chegamos ao dia em que uma pessoa influente afirma que filho é um inferno…
A raiz da tentação promovida pelo Diabo é que só um relacionamento com Deus não vai satisfazer nosso coração. Curiosamente, o apelo da tentação (ser igual a Deus) já havia sido concedido quando o homem foi criado à imagem de Deus.
Voltando ao exemplo de Adão e Eva, qual foi a primeira consequência do pecado? A destruição do relacionamento deles. Ao desobedecerem, se deram conta de que estavam nus (Gênesis 3.7). Repare que não foi uma descoberta, mas uma nova perspectiva. A intimidade que era natural se tornou vergonhosa; eles agora precisavam se cobrir, ocultar ou “melhorar” sua aparência para o outro. E o mais impressionante é que ocultar sua aparência não resolvia o problema da vergonha, apenas a contornava. Continuamos até hoje tentando apresentar uma imagem melhorada de quem somos – não apenas para agradar, mas por medo de que, se eu mostrar quem realmente sou, serei rejeitado.
No entanto, os efeitos da Queda sobre os relacionamentos não terminam aí. Numa reviravolta surpreendente para quem queria independência, autonomia e igualdade, o homem se esconde de Deus quando este o busca. Mais uma vez, ao ser interpelado, sua resposta revela que se escondeu não por consciência do pecado, mas porque estava nu. Essa revelação trouxe ao homem culpa e medo. E sua reação não foi buscar a Deus e pedir perdão, mas justificar-se. Parece com o que tendemos a fazer, não? Tentamos convencer os outros de que somos bem melhores do que somos, e, quando surpreendidos, tentamos nos justificar.
E essa justificação sacrifica mais uma vez os relacionamentos. No caso de Adão foi acusar sua companheira idônea e indiretamente até mesmo Deus. Afinal, a culpa não é minha, foi o que fizeram comigo, eu apenas reagi, me defendi, fiquei traumatizado, fui criado assim… Relacionamentos tornam-se moeda de barganha para tentar aliviar nossa culpa.
Há ainda outra distorção muito comum que é usada por aqueles que tentam resolver sua vergonha e culpa com a dependência ao invés da independência. Estes se anulam, negam quem são e, idolatrando alguns relacionamentos, sacrificam a verdade para tentar mantê-los. Quem age assim não se dá conta que, ao sacrificar a verdade, também sacrifica o amor (1Coríntios 13.6).
A proposta bíblica de relacionamentos não é a independência, nem a dependência, mas a interdependência.
Por outro lado, não sejamos ingênuos. Relacionamentos não só têm um alto custo, mas limitam, sim, nossas opções. Uma vez que eu assumi um compromisso de vida com Ana Paula, qualquer romance com outra mulher deixou de ser uma opção. No momento em que escolhemos ter filhos, nossas finanças, agenda, compromissos e a vida em si ficou limitada a um ser que depende inteiramente de nós por um tempo longo.
No entanto, qual a alternativa? O mundo tem seguido de perto a proposta do Diabo. Por mais que se fale de amor, de compreensão, de família e, ainda esta semana, do valor da infância, a regra, tão honestamente reconhecida por aquele comediante, é que relacionamentos atrapalham. Sendo assim, relacionamentos têm valor enquanto nos interessam, enquanto nos trazem paz e nos ajudam a atingir nossos alvos. Quando não é mais assim, eles são descartáveis.
O que a Bíblia tem a dizer sobre isso? Quais são alguns princípios que podemos encontrar na revelação de Deus?
- Fomos criados para relacionamentos e somente neles somos completos (Gênesis 2.18);
- A essência de relacionamentos saudáveis é cuidar dos interesses dos outros (Filipenses 2.1-4);
- Essa postura de egoísmo, e consequente oposição à ideia de família, mostra a corrupção crescente (2Timóteo 3.1-5);
- A proposta bíblica de relacionamentos não é a independência, nem a dependência, mas a interdependência. Ao invés de não abandonar quem me atrapalha, ou de me anular para não ficar só, somos chamados a nos ajudarmos mutuamente a crescer em direção a Cristo (Efésios 4.14-16).
Este tema é muito mais amplo e eu gostaria de voltar a tratar do mesmo nos próximos artigos. Até lá eu o desafio a, como eu, avaliar seus relacionamentos, compreendendo que somos chamados a viver em relacionamentos saudáveis que nos levem para mais perto do Pai.
Fonte/ chamada.com
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