Fechar
Buscar no Site

Texto do Pr Hamilton Rocha (IBC Calhau) publicado na PG do dia 25/08/2019

ROUXINOL OU COTOVIA?
“Contudo, durante o dia, o Senhor me concede a sua bondade; durante a noite, seu cântico está comigo. Esta é a minha oração ao Deus da minha vida” (Salmo 42:8)
Pr. Hamilton Rocha*
William Shakespeare, renomado dramaturgo inglês, escreveu algumas tragédias que ficaram famosas no mundo inteiro: Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth, Romeu e Julieta. Talvez a mais conhecida seja esta última. Trata-se do amor entre dois jovens cujas famílias se odiavam. Romeu pertencia à família Montechio, Julieta à família Capuleto. Em um dos seus encontros às escondidas o casal apaixonado estabelece o seguinte diálogo:
Julieta – “Queres ir embora?…O dia ainda não está próximo…Era do rouxinol e não da cotovia a voz que feriu o fundo receoso de teu ouvido…Todas as noites canta naquela romãnzeira…Acreditas, meu amor, era o rouxinol.
Romeu – “Era a cotovia, mensageiro da aurora, e não o rouxinol…
Julieta – “Foge daqui, vai-te, anda! É a cotovia que canta desafinada, lançando ásperas dissonâncias e desagradáveis sons agudos! E dizem que a cotovia produz ao cantar uma doce harmonia…Porque essa voz nos enche de temor e te arranca dos meus braços, afugentando-te daqui com seu canto de alvorada! Oh! parte agora! Está ficando mais claro, cada vez mais claro!”
A cotovia canta de dia, rouxinol à noite. O homem é mais cotovia do que rouxinol, porque prefere cantar quando o sol aparece. Quando há luz. De dia. Quando a noite desce ou quando há nuvens nos céus, ele perde a vontade de cantar. Fica triste, abaixa a cabeça. Queixa-se. Chora.
A vida é como a natureza: tem dias e tem noites. É dia quando tudo vai bem. É noite quando as coisas vão mal. Quando tudo vai bem, há sol varrendo de luz a alma. E cantamos. Quando vêm os problemas não podemos cantar.
Não podemos? Podemos. Podemos ser cotovias. Podemos ser rouxinóis. De dia e de noite. Ao sol e à chuva. Na madrugada da vida como no seu crepúsculo. Cantar como o salmista cantava: “Contudo, durante o dia, o Senhor me concede a sua bondade; durante a noite, seu cântico está comigo. Esta é a minha oração ao Deus da minha vida” (Salmo 42:8).
John Bunyan, famoso pregador inglês, esteve preso por 12 anos, 1/5 de sua vida. Na prisão ele escreveu “O Peregrino”, sua Magna Opus. Essa obra é um aceno de esperança. Um cântico de fé. Um raio de sol atravessando as nuvens. Um súbito clarão iluminando a prisão, como aquele que iluminou o cárcere de Pedro, quando um anjo o acordou para libertá-lo (Atos 12:7).
Canto de rouxinol, que canta de noite, e não de cotovia, que canta ao amanhecer. Como o cântico de Paulo e Silas na prisão em Filipos (Atos 16:25) ou como o hino que Jesus e seus discípulos entoaram na noite em que nosso Senhor foi traído, logo após a instituição da Ceia: “E tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras” (Mateus 26:30).
Canto do rouxinol mesmo que seja no exílio. Gonçalves Dias escreveu sua “Canção do Exílio”, poesia romântica escrita em 1843, quando cursava a Faculdade de Direito de Coimbra. Vivia, se assim podemos dizer, um exílio físico ou geográfico, com saudades de sua terra: “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá; as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá…”
Há, entretanto, outra “Canção do Exílio”, que não chegou a ser cantada e que lembra um exílio de verdade, que não foi só desterro, mas cativeiro. Cativeiro de Israel na Babilônia, durante setenta anos.
O salmista assim se expressa: “Às margens dos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, recordando-nos de Sião. Nos salgueiros que lá havia penduramos nossas harpas. Pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções; e os que nos oprimiam pediam que os alegrássemos: Cantai-nos um dos cânticos de Sião. Mas como entoaremos o cântico do Senhor em terra estrangeira? (Salmo 137:1-4).
Como tinha que ser, os cativos sofriam com aquela humilhação. O homem nasceu para ser livre – tão livre que nem Deus o obriga. Tão desanimados estavam os israelitas que penduraram as suas harpas nos salgueiros que balançavam tristemente nas margens do rio Eufrates. Era como se aquelas harpas chorassem com os músicos, que não paravam de chorar, andando em grupos, cabisbaixos, enchendo de sonhos aquela solidão. Seus opressores zombavam deles. E o silêncio continuou, de gente que perdeu a alegria de viver. A canção morreu na garganta dos cantores do “The Voice Babilônia”.
Por que não cantariam? Saudades da terra distante? Nostalgia da pátria? Indignação? Reverência? As canções de Sião deveriam ser cantadas no templo. Não eram profanas; eram sagradas. Tinham sentido litúrgico. Cantá-las em terra pagã seria cometer um sacrilégio.
Fosse qual fosse a razão, a canção do exílio é para ser cantada qualquer que seja o exílio, mesmo que seja cativeiro, além do desterro, como foi aquele. Quando a canção vem de Deus, a dos israelitas vinha, pois era o cântico de Sião ou cântico do Senhor. De inspiração divina. Que pode desencantar um pântano em jardim. As canções de Deus podemos entoar, mesmo que seja em terra estranha.
Nada de pendurar nossas harpas nos salgueiros: elas existem para tocar. Para tocar as canções de Deus. Para serem tangidas pelos nossos dedos e não pelo vento. Harpas eólias só na lenda.
Aqueles exilados – cantores sem voz e músicos sem instrumentos – deveriam ter cantado, mesmo que a canção fosse o canto do rouxinol.
• Pastor da Igreja Batista do Calhau em São Luís do Maranhão

O conteúdo deste blog é livre e seus editores não têm ressalvas na reprodução do conteúdo em outros canais, desde que dados os devidos créditos.

mais / Postagens