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No Maranhão, a miséria dos turistas trabalhadores

Por Chico Otavio (O Globo)

COROATÁ (MA) – Se não havia como vencer a miséria, o motorista Júnior Rachid, de 34 anos, decidiu valer-se dela para sobreviver. Há um ano, comprou um ônibus Scania 112, de 1990, e passou a fazer parte do único negócio que prospera em Coroatá, cidade maranhense a 276 quilômetros de São Luís: o transporte clandestino de trabalhadores para as regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, onde o corte da cana de açúcar e a construção civil os espera. A cada viagem, Rachid leva cerca de 50 pessoas, a maioria homens jovens, que apostam na estrada como a única chance de escapar da vida miserável e sem esperança no interior do Maranhão.

— Levo iludidos e trago arrependidos — diz o motorista.

Ao contrário dos migrantes do passado, que fincavam raízes onde desembarcavam, os passageiros de Rachid cumprem jornadas de trabalho temporário e depois voltam. No Maranhão, a migração sazonal movimenta de 500 mil a 1 milhão de pessoas todo ano. Quem quiser conhecê-la, basta chegar cedo às rodoviárias de Coroatá e das cidades vizinhas de Codó e Timbiras, todas as sextas-feiras, e acompanhar as cenas de famílias humildes despedindo-se do filho que sobe no “ônibus de turismo”.

A região dos Cocais, onde fica Coroatá, entre os vales dos rios Itapecuru e Mearim, no centro do Maranhão, é uma espécie de enclave da mão de obra barata que abastece o país. Uma estrutura fundiária extremamente arcaica, caracterizada pela predominância da grande propriedade, pela agricultura de subsistência e pela produção de óleo de babaçu, processo artesanal que lembra o homem coletor da pré-história — somada à ausência de alternativas de trabalho urbano —, faz da população local presa fácil para a indústria do tráfico de pessoas. Muitos que embarcam mal sabem para onde estão indo:

— Estou esperando um companheiro. Se ele aparecer, vou para as bandas de lá. Não sei exatamente onde, mas sei que é São Paulo — comenta Edmilson Gomes, de 46 anos, enquanto aguarda o embarque em Codó.

Ao pegar a estrada, o ônibus de Edmilson passa em frente à Unidade de Ensino José Sarney, em Timbiras. Prédios como este servem muito mais para homenagear a família que, há quase cinco décadas, domina o Maranhão do que para oferecer às cidades dali condições de romper a estagnação econômica. De acordo com o Censo de 2010, do IBGE, 72,15% dos moradores de Codó, com dez anos ou mais, não têm instrução ou não completaram o ensino fundamental.

Para o professor Marcelo Sampaio Carneiro, do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a onipresença de Sarney nos Cocais vai além de um nome na porta de uma escola. As raízes da estagnação, sustenta Carneiro, teriam crescido nos anos 1960, quando José Sarney, então governador do estado, criou a Lei de Terras, a pretexto de modernizar o Maranhão, e introduziu na região os grandes latifúndios, financiados com recursos da Sudene, e os grileiros:

— Os proprietários usaram a terra para acessar os fartos incentivos fiscais, formaram pastagens de baixa qualidade e compraram gado apenas para justificar o uso desses recursos. Hoje, a pecuária nem sequer é expressiva na região. Não há nenhum argumento que justifique o monopólio da terra.

Sem outras alternativas, essas cidades tiraram da desesperança sua vocação econômica. Na década passada, gente como Beto do Codó, Antônio Grosso, Francinaldo e Suelen começaram a montar uma rede de agenciamento de mão de obra barata nos Cocais. Eles se apresentam como donos de agências de turismo, que estão por toda parte, mas normalmente os ônibus partem cheios e voltam vazios. Uma das agências, em Coroatá, chama-se Clandestur.

O destino do esquema inicial era São Paulo, com suas usinas produtoras de cana de açúcar, mas o crescente processo de mecanização dessa lavoura reduziu as “encomendas” e os obrigou a diversificar o negócio. Na semana passada, por exemplo, a agenciadora Suelen, uma paulista de Pradópolis que não forneceu o sobrenome, embarcou 40 trabalhadores para as obras do programa Minha Casa Minha Vida em Macaé, no norte fluminense. Ela disse que o contrato com o “encarregado da obras”, que identificou apenas como Luís, prevê o envio de um total de 300 homens.

Em Coroatá, segundo a Comissão Pastoral da Terra, mais da metade dos 60 mil moradores são favorecidos com algum tipo de benefício social, principalmente a aposentadoria rural e o programa Bolsa Família. Mas, para os jovens locais, a renda é insuficiente para dar conta de seus sonhos. O maior deles, diz o vereador petista Sebastião Araújo, o Ciba, é a compra de uma motocicleta, ambição de nove entre dez “passageiros” das agências de turismo dos Cocais.

— Eles chegam a trazer as motos de São Paulo no bagageiro do ônibus. Por isso, mesmo com todas as mazelas do emprego que os aguarda, eles sempre querem ir — diz Ciba.

Antônio Carlos Gomes Lobo, de 31 anos, é um deles. Analfabeto, casado, dois filhos, trabalha na roça de mandioca, arroz e milho no povoado Nogueira, área rural de Coroatá. Ele viajou duas vezes — em 2006, para Uberaba (MG), e em 2009, para Guaribas (SP). Só não voltou porque ainda não conseguiu os R$ 170 cobrados por uma passagem nos ônibus de turismo.

— Quando eu conseguia cortar 300 metros de cana por dia, chegava ao fim do mês ganhando R$ 1,2 mil. Aqui, não existe emprego que pague a mesma coisa —garante.

Francisco Gilson Gomes Guimarães, de 33 anos, também gostaria de voltar, mas não poderá mais. Em 2008, conseguiu comprar uma moto com o dinheiro que ganhou no corte de cana em São Paulo. Dois anos depois, acidentou-se em Coroatá. Uma perna ficou mais curta e ele perdeu qualquer esperança de renda.

‘Aqui, só tem coco para quebrar’, diz agenciador

O forasteiro chega no momento em que Francinaldo de Oliveira dos Santos, de 31 anos, dono da Franatur Turismo, em Coroatá, está negociando com “seu Antônio”, pelo celular, o agenciamento de 25 trabalhadores. Mas ele, até ali, só havia conseguido três, “Edilson, Elton e Maciel”, como explica ao interessado. Embora negue que seja um “gato”, como é chamado o agenciador de mão de obra barata, Francinaldo depende dos pedidos que chegam pelo telefone para sobreviver no negócio.

De todos os agenciadores procurados na região, ele é o mais franco e disposto à conversa. Aos poucos, vai abrindo o jogo. “Seu Antônio”, o interlocutor ao celular, encomendara trabalhadores para a construção de um presídio em Capela do Alto, São Paulo. O forte da Franatur é a rota da cana de açúcar de São Paulo, que passa por Barretos, Sertãozinho, Dumont, Pradópolis, Colina e Guariba, mas a redução da demanda por mão de obra o obrigou a abrir novos horizontes. Na medida em que a conversa avança, ele não se importa em assumir o que faz:

— Aqui não tem trabalho. Só tem coco para quebrar a R$ 6 por dia — justifica.

Ex-boia-fria, ele viajou pela primeira vez para São Paulo aos 17 anos, onde conseguiu um trabalho em Dumont. Aos poucos, sua casa na cidade foi transformada em ponto de encontro de maranhenses e o estimulou a organizar um esquema regular de viagens. O negócio prosperou e, 13 anos depois, transformou Francinaldo em referência no ramo das agências de turismo da região. Além de passageiros, ele leva mercadorias e até recados no vaivém semanal, sempre às sextas, entre Coroatá e a rota da cana paulista.

Para o chefe do escritório regional do IBGE do Maranhão, Marcelo Melo, agências como a Franatur continuarão esvaziando as cidades do interior enquanto o estado não modernizar e diversificar a economia. Ele disse que essa alteração só valerá a pena, do ponto de vista social, se for capaz de absorver a força de trabalho local:

— Para isso, é preciso um esforço gigantesco na área educacional e de qualificação profissional para inclusão dos trabalhadores no processo.

Melo sustenta que o Maranhão não possui atualmente uma atividade, ou grupo de atividades econômicas absorvedoras de mão de obra. O agronegócio da soja, segundo ele, é intensivo em capital e as atividades ligadas ao extrativismo mineral de grande escala absorvem apenas trabalhadores com maior grau de qualificação. O meio urbano dos municípios, por sua vez, não consegue absorver os que retornam do trabalho temporário no Sudeste.

As delegacias policiais da região refletem o resultado deste processo. Cresceram as apreensões de crack e o número de mortes associadas a trabalhadores que estiveram fora temporariamente. Francinaldo disse que, numa viagem de retorno recente, trouxe de volta três maranhenses jurados de morte pela milícia paulista por envolvimento em furtos.

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