Acordo entre facções PCC e Comando Vermelho leva “paz” a Fortaleza
El Pais – O relógio marca pouco mais de 20h de uma noite abafada de agosto no Jangurussu, periferia de Fortaleza. Em outros tempos, Rodrigo de Araújo, 19, se obrigaria a caminhar pelas vielas escuras de terra, onde o esgoto ainda corre solto pelo meio da rua, em nível máximo de alerta, atento a cada sombra e movimento nas esquinas. O bairro faz parte da região conhecida como Grande Messejana, historicamente uma das mais violentas da capital cearense. No entanto, hoje o jovem anda despreocupado: “Aqui tá tudo em paz. Fortaleza toda, Ceará todo, tudo pacificado”. Há cerca de seis meses seus moradores sentem na pele os efeitos do que ficou popularmente conhecido como a “pacificação”. O grande responsável por esse processo, no entanto, não foi o Estado. A paz que hoje vigora em quase todas as periferias de Fortaleza é obra do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV), facções criminosas surgidas em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente.
Araújo comemora a recém-conquistada liberdade de ir e vir em seu próprio bairro. “Antes eu não podia atravessar aqui. Quando precisava cruzar o Jangurussu, ia com o coração na boca”, afirma. “Hoje eu ando por qualquer canto”. Até o poder das facções do Sudeste ter se imposto, o bairro era dividido em setores que eram controlados por gangues rivais ligadas a torcidas organizadas de futebol. A Movimento Organizado Força Independente, do Ceará, e a Torcida Organizada Jovem Garra Tricolor, do Fortaleza, são dois dos maiores exemplos deste fenômeno. Elas controlavam o tráfico de drogas no local e atacavam umas às outras, deixando uma pilha de cadáveres. Com a chegada do CV e do PCC, assaltos no bairro foram proibidos, e o ciclo de vinganças provocado pelas gangues foi interrompido. Homicídios, que eram parte do cotidiano, aos poucos se tornam uma lembrança, ainda que não tão distante.
Seria ingênuo, no entanto, acreditar que essa paz é fruto de algum humanismo por parte das facções. A ideia é reproduzir o modelo empresarial adotado pelo PCC em São Paulo, deixando antigas desavenças de lado e focando no comércio da droga e no enfrentamento à polícia. A lógica é simples: homicídios chamam a atenção das autoridades, e roubos geram mal-estar na comunidade, incentivando que os moradores delatem os traficantes que não conseguem “manter a ordem”.
S. L. D, de 21 anos, é um dos líderes do PCC no Jangurussu. Por razões óbvias ele não quis divulgar o nome. Entrou em contato com os criminosos do Sudeste enquanto cumpria pena de oito meses de prisão na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinho, conhecida como CPPL II, uma das mais críticas do sistema penitenciário. “Essa paz chegou em todas as comunidades, cada quebrada tem pelo menos um irmão [nome usado pelos integrantes da facção para se referir aos colegas do crime]”, afirma. De acordo com ele, não houve resistência por parte das gangues e torcidas com relação à chegada do PCC e do CV no Estado, uma vez que a nova ordem potencializou os ganhos do tráfico, sendo benéfica para todos. Ele estima que os pontos de venda de droga de seu setor movimentam cerca de meio milhão de reais por mês. Crack e cocaína são os carros-chefes do negócio.
“Hoje em dia ninguém mais toma atitudes isoladas, não se pode quebrar a paz. Aqui não se tira mais uma vida à toa, nem em caso de dívida de droga”, diz o traficante. Os responsáveis pelos pontos de venda foram orientados a não fazer fiado em seus negócios: a prática de esperar pelo pagamento futuro da droga frequentemente levava à execução do usuário que não saldou a dívida. S. L. D já se acostumou com o papel de mediador de conflitos no bairro. De brigas de faca, homens traídos em busca de vingança, calotes, antigos rivais de gangue, tudo o que poderia acabar em morte agora é arbitrado pelas facções. O modelo que ficou conhecido como o tribunal do crime, vigente nas periferias de São Paulo, também foi implementado em Fortaleza. Eventuais queixas são levadas às lideranças do tráfico – muitas vezes dentro das cadeias -, e só então uma sentença é proferida. A morte é o último recurso.
O morador do Pirambu, bairro localizado na costa leste de Fortaleza, literalmente à beira mar, se acostumou a conviver com o estigma da região. Afinal, trata-se de uma das maiores favelas do Brasil, com cerca de 250.000 habitantes. E também era uma das mais violentas. A má fama do local é evidenciada na fala de Airton Barreto, 65, que se mudou para lá na adolescência. “Eu costumava dizer que morava no ‘vish’. Porque era só falar o nome Pirambu que as pessoas falavam ‘vish’ em tom pejorativo”, diz. Lá, a paz chegou mais cedo do que no Jangurussu. Desde o início do ano passado as facções pacificaram a região. Nos muros, pichações com os dizeres “quem roubar morador morre” lembram a todos da nova ordem em vigor. Além disso, o tráfico usou as redes sociais para disseminar a mensagem, e em alguns locais até colou cartazes explicando a nova ordem vigente: “Quem roubar morador morre”.
“É uma paz diferente”, diz Airton Barreto, um dos moradores mais antigos de Pirambu. “Existem vários tipos de paz: a paz de cemitério, a paz fruto da justiça e a paz dos justiceiros”, afirma, dando a entender que o a realidade do local é do último tipo. “Hoje você pode ir a qualquer rua, entrar em qualquer viela, sem medo de ser assaltado ou morto”, diz. Para ele, as facções só conseguiram se impor porque o Estado falhou. “Não existem políticas públicas efetivas nas periferias. E o Governo é ausente, abrindo caminho para que o crime se imponha”, critica.
Apesar de recente, essa nova ordem nas periferias do Estado é apontada por especialistas e por moradores como responsável pela queda dos homicídios tanto no Ceará quanto na capital. Em Fortaleza, comparando-se os sete primeiros meses de 2015 com o mesmo período do ano seguinte, houve redução de 37,6% no número de crimes dessa natureza: de 948 mortos no ano passado para 591 em 2016. No Estado a redução foi menor, mas significativa: 12%. De 2278 para 2000. Os números são da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará.
“Grande parte da redução dos homicídios aqui se deve a esse impacto [das facções]”, afirma Luiz Fábio Paiva, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência. De acordo com ele, essa queda “não é algo que tem a ver com novidades no campo da segurança pública, nada de novo tem sido feito na área que possa justificar os dados”. Segundo o professor, “não é possível precisar a porcentagem de favelas pacificadas, mas escutamos relatos de todas as áreas da cidade de Fortaleza”.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social afirma que “os resultados obtidos com a diminuição dos crimes letais são consequência de um trabalho que vem sendo desenvolvido e aperfeiçoado desde janeiro de 2014” pelo Estado. De acordo com o texto, “qualquer outra suposta razão para esses resultados positivos (…) não condizem com a realidade”. A secretaria cita o Programa Em Defesa da Vida, que dividiu o Estado em áreas específicas de policiamento, com “metas de redução de crimes aferidas diariamente”, como um fator decisivo na redução. Além disso, a pasta destaca o trabalho integrado das diferentes forças policiais como uma das razões do sucesso no “combate à criminalidade”. De acordo com o secretário Delci Texeira, “novas ações já estão sendo idealizadas e pensadas para que possamos ter quedas ainda maiores em todos os índices de criminalidade”.
A redução está longe de ser insignificante: no início deste ano Fortaleza apareceu como a cidade mais violenta do país no ranking divulgado pela ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal, com uma taxa de 60,6 homicídios por 100.000 habitantes – a 12ª mais violenta do mundo. A Organização das Nações Unidas considera epidêmicas taxas acima de 10 mortes. O estudo considerou apenas cidades com mais de 300.000 habitantes. Para efeitos de comparação, São Paulo tem uma taxa de 10,6 por 100.000, e o Rio 18,2. Os dados são de 2015, e a expectativa é que o Ceará apresente uma queda acentuada este ano.
Antônio Cirlanio Jorge da Silva, 23, conhecido no bairro como Bruguelo, sentiu na pele a lei do cão que vigorava antes da pacificação. Dois anos atrás o então gerente de um dos pontos de venda de droga do setor Estrela do Jangurussu foi visitar a namorada no setor vizinho, Palmeiras. Surpreendido por integrantes da gangue rival e mesmo armado, não conseguiu reagir a tempo: levou um tiro no pescoço, que errou a artéria carótida por milímetros. A bala destruiu uma de suas cordas vocais, e hoje o jovem fala com dificuldade. “Desde a pacificação decidi sair do crime. Para nós, a chegada das facções foi boa, hoje ando onde quero sem medo”, diz. Silva aponta qual o novo rumo dos conflitos no Estado: “Hoje a guerra é entre facção e polícia”.
A pacificação que vigora no local se faz sentir nos pequenos prazeres que os moradores aos poucos voltam a usufruir. “Quando eu vejo essa paz… Olha, antes eu não tinha prazer nenhum de ficar sentado na porta de casa conversando com os vizinhos numa noite fresca”, conta José Pereira, 65. “Hoje está uma calma, todo mundo anda sossegado. Antes não passava um dia em que não se falasse de um ou dois mortos no bairro. O pessoal até soltava fogos para comemorar a morte de um inimigo”.
O traficante J. R., 25, morava na zona leste de São Paulo até junho de 2015, quando um mandado de prisão por tráfico e assalto a mão armada fez com que ele se refugiasse no Pirambu. “Tenho orgulho de ter ajudado a construir essa paz aqui”, afirma. Integrante do PCC, ele explica como funciona o acordo entre as facções no local: “O CV tem muita arma, um estoque bom, então isso é com eles. E o PCC cuida de trazer a droga pra cá”, afirma. Quanto aos poucos bairros de Fortaleza que ainda resistem à nova ordem do crime, ele é taxativo. “Vai ser tudo derrubado já já. Porque agora eles [líderes de gangue que resistem ao acordo] tão na rua, e quem tá na rua faz o que quer. Agora quando for preso, lá dentro [da cadeia] é nóis, quando falar com os cabeção [líderes] não tem como fugir da ideia”, diz.
“Hoje dá até para sair de casa com tablete, notebook…”, brinca Gina Cláudia, 44, enquanto empurra o carrinho com sua filha Laura, de três anos, ladeira acima no Pirambu. “Antes eu evitava sair de casa de noite, e quando saia não levava nada, nem celular nem carteira”. Já Maria Ribeiro, 40, faz uma leitura mais ponderada do que está ocorrendo no local. “Está pacífico. Mas é difícil dizer que prefiro agora do que antes. Sabemos que qualquer vacilo é pago com a vida”, diz. Ela perdeu um irmão que era integrante de gangue para a violência em 1998. “Mas na verdade tenho mais medo da polícia do que de qualquer facção ou gangue aqui do bairro. Hoje em dia se você anda na linha, não tem que temer o crime”, afirma.
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