Os livros do Sarney

Millôr, o Grande. Foto: Reprodução.
O ex-presidente José Sarney anda ocupado. Aos 95 anos de idade, mas com fôlego de setenta e poucos, ele tem percorrido o país de norte a sul para receber homenagens por sua contribuição à redemocratização brasileira. O pai da Roseana já foi celebrado em Brasília, São Paulo, aqui na terrinha, e só não foi ao Acre buscar medalha porque ainda não chamaram.
A badalação tem sido tanta que o pinheirense, eleito imortal da Academia Maranhense de Letras aos 22 anos de idade, decidiu relançar três obras de sua lavra: A Duquesa Vale uma Missa, Saraminda e O Dono do Mar. É que ter virado quase uma unanimidade na política, adulado por gente de todos os espectros, não basta ao ex-presidente. No fundo, o que Sarney queria mesmo era ser reconhecido como escritor sério – o que nem a sua eleição para a casa de Machado de Assis, em 1980, foi capaz de fazer.
A notícia do relançamento dos livros de Sarney, que curiosamente só saiu nos veículos da sua família, me fez lembrar do escrutínio que Millôr Fernandes – este, sim, um baita escritor – fez do “Brejal dos Guajas”, livrinho (50 páginas) que o maranhense publicou no mesmo ano em que herdou a cadeira de presidente de Tancredo Neves. Publicada em capítulos no falecido Jornal do Brasil, em janeiro de 1988, e depois em livro, a crítica de Millôr é, a um só tempo, avassaladora e divertidíssima. Aqui vão alguns trechos:
“Brejal dos Guajas só pode ser considerado um livro porque, na definição da Unesco, livro ‘é uma publicação impressa não periódica com um mínimo de 49 páginas’. O Brejal tem 50. Materialmente, Sir Ney salvou-se por uma página. Contam os íntimos que o “escritor”, depois de vinte anos de esforço, bateu o ponto final na página 50 e gritou, aliviado, pra dona Kyola: ‘Maiê, acabei!’”.
“As opiniões divergem. Alguns brilhantes e cultos intelectuais, afirmam, audaciosamente, que Brejal dos Guajas é um livro. Eu garanto que não. É uma anedotinha “socialzinha” tolinha (já contada mais de um milhão de vezes) da briguinha de dois coroneizinhos de uma cidadezinha perdidinha no interiorzinho do Maranhão. O autor deve ter lido umas 20 páginas de Jorge Amado (Marli, que socialismo!) e umas cinco de Guimarães Rosa (Zezinho, que linguagem! E que difícil, Murilo!) e isso, claro, lhe causou uma indigestão na cabeça. Incapaz de juntar sujeito e predicado em português escolar, se perdeu na aventura da linguagem que é Guimarães Rosa – e até hoje não encontrou a volta.”
“Há solecismos em penca, as ideias nunca se completam e sempre se contradizem. A cidade, que não tem escola, tem professora e alunos, não tendo telégrafo transmite telegramas, não possuindo edifícios públicos tem prefeitura, câmara de vereadores, juizados de casamento, dois cartórios, ostenta uma força policial de pelo menos 12 homens (relativamente, o Rio teria que ter uma força policial de quase meio milhão de policiais), é dominada por dois primos por pais diferentes (!!!!), “ricos e poderosos”, e, tendo só duas ruas (quase uma impossibilidade urbanística; eu sei como desenhar uma cidade de duas ruas, Ele não sabe), tem duas orquestras (ele quer dizer bandas), e comporta ainda mercado, lojas, igrejas matriz, etc. O verdadeiro milagre brasileiro! Tem mais, essas duas espantosas ruas de 120 casas (com o que Sir Ney quer significar um vilarejo perdido do mundo), por meus cálculos matemáticos irrefutáveis, abrigam uma população de 15. 272 pessoas, o que faz do Brejal, em 1945, época da istória, talvez a maior cidade maranhense, depois de São Luís.”
Mas Millôr Fernandes também sabia reconhecer as qualidades do autor. Diz ele: “Só um gênio conseguiria fazer um livro errado da primeira à última frase.”
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