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Frank Sinatra está resfriado; sessenta anos de uma obra-prima do jornalismo

Foto: Reprodução

Frank Sinatra foi um dos sujeitos mais poderosos e influentes do mundo artístico no século XX. Adorado pelas mulheres, imitado (e muitas vezes odiado) pelos homens. Além da carreira meteórica na música, interpretando clássicos como “New York, New York”, também atuou em mais de cinquenta filmes – ganhou o Oscar duas vezes e tem duas estrelas na Calçada da Fama, em Hollywood, com seu nome. Sua figura inspirava tanto poder e respeito que houve uma época em que esse mundo parecia girar de acordo com a vontade dele. E talvez girasse mesmo.

Com tanta badalação, parece meio óbvio que jornalistas de todos os cantos do mundo, das obscuras às mais sofisticadas redações, tivessem a ambição de entrevistá-lo – mesmo que fosse para perguntar coisas bobas como “Quais são seus próximos projetos, Frank?” ou “É sempre uma emoção cantar no Garden, Frank?”.

Mas, para um moço chamado Gay Talese, a notícia de que teria de entrevistar Frank Sinatra não foi nada animadora. O hoje reconhecidíssimo guru do jornalismo (tem 93 anos), um dos pioneiros do new journalism americano, sempre preferiu escrever sobre gente comum, como as camareiras do Empire State, um escritor de obituários ou operários trabalhando em uma ponte. Mas, no inverno de 1965, enviado pela revista Esquire, Talese pousou em Los Angeles com a missão de entrevistar ninguém menos do que “A Voz”. Ele não sabia, mas acabaria escrevendo uma das obras definitivas do jornalismo literário.

O editor da Esquire, Harold Hayes, havia combinado uma entrevista com o relações-públicas de Sinatra. Talese se hospedou em um hotel, alugou um carro e tratou de devorar tudo o que fosse possível sobre Sinatra antes da entrevista. Mas eis que um dos assessores do Homem liga: “O Sr. Sinatra está muito perturbado, blá-blá-blá, e ainda por cima resfriado – de modo que teremos que cancelar a entrevista marcada para esta tarde.” E agora?

Talese fez o que qualquer um faria: solidarizou-se com os problemas do Sr. Sinatra e tentou remarcar a entrevista para outro dia. O assessor, malandro, desconversou: “Você pode ligar daqui a alguns dias, mas não posso prometer nada.”

O jornalista burocrático do século XXI, cada vez mais preguiçoso por causa das facilidades da internet, teria redigido algumas perguntas (todas óbvias e chatíssimas) e enviado por e-mail ao assessor de Sinatra. Antes de receber no celular o aviso de que as respostas haviam chegado, já teria o texto pronto, pois sabia exatamente o que seria respondido – muito provavelmente pelos próprios assessores, sem Sinatra sequer tomar conhecimento das perguntas. O resultado seria mais uma entrevista sem graça, apresentada como exclusiva, que logo cairia no esquecimento.

Mas Talese não era (e não é) um jornalista burocrático. Sem poder entrevistar “A Voz”, ele tratou de conversar (sem utilizar gravador, assim como Truman Capote fazia) com todos os que fossem próximos a ela, inclusive com uma velhinha que era a responsável por cuidar das mais de sessenta perucas de Sinatra durante as turnês. Levava essas pessoas para cafés, almoços e jantares. Durante as entrevistas, agia como um “confidente curioso”, raramente tomando notas, ou deixando para fazê-lo às escondidas. Era o seu método para deixar os entrevistados mais confortáveis. À noite, de volta ao hotel, enchia laudas com tudo o que escutara durante o dia. Passada a primeira semana, já acumulava mais de três mil dólares em gastos. Preocupado, Talese ligou para seu editor e explicou toda a situação. “Não se preocupe com as despesas, desde que esteja conseguindo alguma coisa aí”, foi o que ouviu de Harold Hayes (algo inacreditável nas redações de hoje, eu sei).

A empreitada de Talese acabou chamando a atenção dos assessores de Sinatra. Numa certa manhã, um deles liga: “Ouvi dizer que você anda por toda a cidade encontrando-se com amigos de Sinatra, levando amigos de Sinatra para jantar”, disparou num tom quase acusatório. “Estou fazendo o meu trabalho”, Talese respondeu, com sua elegância de filho de alfaiate. O assessor, intrigado – talvez com a intenção de analisá-lo de perto – acabou convidando-o para acompanhar uma gravação que Sinatra faria no dia seguinte para um especial da NBC, intitulado Sinatra – O Homem e Sua Música. Mas pontuando o que Talese já imaginara: nada de entrevistas.

Estando perto de Sinatra, mesmo sem poder entrevistá-lo, Talese pôde captar outros aspectos e idiossincrasias do homem por trás do mito. Como, por exemplo, o fato de Sinatra ser, entre o seu grupo de amigos, como um Don Corleone – Il Padrone, do filme O Poderoso Chefão. Ou ainda o fato de ele não conseguir dobrar o dedo mínimo de uma das mãos por causa de uma artrite etc., etc.

A “expedição” de Talese durou quase um mês e custou cerca de cinco mil dólares. E, mesmo assim, ele não conseguiu sentar-se com Sinatra nem uma única vez. O que, no fim, não foi um problema, porque ele havia entrevistado mais de cem pessoas e acumulado mais de duzentas páginas de anotações sobre Sinatra. O ponto forte do artigo, na opinião de muita gente e na do próprio autor, é o fato de que Talese observou Sinatra, em vez de apenas escutá-lo.

De volta à redação da Esquire, em Nova York, Talese ainda demorou seis semanas para organizar as notas e escrever o artigo de 55 páginas, que recebeu o título “Frank Sinatra está resfriado”. Talese descreveu desta forma o resfriado de Sinatra: “Sinatra resfriado é Picasso sem pintura, Ferrari sem combustível – só que pior. Porque um resfriado comum despoja Sinatra de uma joia que não dá para pôr no seguro – a sua voz –, minando as bases de sua confiança…”. Não é por acaso que o texto, ainda hoje, sessenta anos depois, seja cultuado. Talese é um messias do bom jornalismo, enviado para nos salvar da mesmice que invade as redações de todo o mundo.

P.S. – Ia esquecendo: após a publicação do artigo, Frank Sinatra fez questão de conhecer Gay Talese pessoalmente. Só então o repórter conseguiu a conversa que tanto queria.

(Texto publicado originalmente na edição impressa do Jornal Pequeno).

 

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