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Sarney, Supremo e foro privilegiado

O  Supremo decidiu que o ex-presidente José Sarney, hoje um cidadão sem qualquer cargo político, deve ser julgado pelo tribunal. Essa decisão toca em uma questão fundamental: em que situações quem não tem prerrogativa de foro deve, mesmo assim, ser julgado diretamente pelo Supremo?

A lei parece clara, mas a realidade é complexa e a jurisprudência do Supremo é tortuosa.

Segundo o Código de Processo Penal, se uma pessoa comum pratica um crime em coautoria com uma autoridade que tenha essa prerrogativa, pode responder por este crime diretamente no Supremo. Mas, em concreto, é difícil traçar uma linha clara separando esses casos daqueles em que o tribunal desmembra o processo e manda o réu comum para a primeira instância.

Em meio a Lava Jato – e depois do Mensalão –, essa questão se tornou urgente.

Nos anos 90, a advogada Jorgina de Freitas, que respondia por fraudes contra a previdência perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por força da presença de um juiz entre os acusados, tentou desmembrar seu processo. Considerava que o foro no tribunal de segundo grau não lhe trazia qualquer privilégio, porque suprimia um grau de recurso, violando assim a Constituição e tratados internacionais. Foi ao Supremo, mas perdeu.

Duas décadas depois, o cenário atual ainda é de instabilidade e incerteza.

No julgamento do Mensalão (AP 470), de 38 réus, apenas 3 eram autoridades com foro no Supremo. O ex-ministro Márcio Thomaz Bastos defendeu a tese do desmembramento do processo em relação aos 35 “comuns” – pedindo que eles fossem julgados na primeira instância. O Supremo não concordou, decidindo que todos os réus responderiam em conjunto. Foi assim que Marcos Valério e tantos outros sem prerrogativa de foro acabaram condenados em primeira e única instância pelo tribunal.

Mas esse entendimento não se sedimentou.

A manutenção desta regra dificultava o trâmite dos processos. Não raro, autoridades que cometem crimes, o fazem na companhia e com o auxílio de pessoas sem foro, ou que perdem o foro. Agrupar todos os envolvidos em um único processo envolve uma logística muito mais complexa. Um custo frente ao qual, desde o Mensalão, o Supremo parece hesitar.

Na chamada Operação Furacão (2006), o Supremo decidiu pelo desmembramento. Manteve para si o processo contra um Ministro do STJ, que atraiu a competência daquele tribunal, e o estendeu a dois desembargadores federais e um procurador regional da república que teriam foro, em princípio, no STJ. Os demais – policiais e bicheiros – retornaram para o primeiro grau, no Rio de Janeiro.

O critério passou a ser, em princípio, que a concentração do feito ou sua separação, seria decidida caso a caso, em função da conveniência do processo. Parâmetro muito subjetivo, frágil e inseguro.

A Lava Jato trouxe de volta o problema em uma escala nunca antes vista: pessoas comuns processadas em Curitiba, e seus coautores com foro, no Supremo. Imaginar que a presença de deputados, senadores e ministros, dentre os envolvidos na Lava Jato, pudesse atrair para o Supremo todos os processos, seria o mesmo que renunciar a qualquer esperança de eficácia. O Supremo jamais teria condições de acompanhar a investigação, processar e julgar todo este universo de atores e fatos. Não apenas por menor especialização nessas tarefas, mas sobretudo porque, literalmente, tem muito mais o que fazer.

Separar passou a ser a regra. Para o bem e para o mal.

Em setembro de 2015, a senadora Gleisi Hoffman e seu marido Paulo Bernardo, investigados por supostas fraudes em empréstimos consignados, viram-se separados no Inquérito 4130. Por maioria, os ministros mantiveram Gleisi no Supremo, mas remeteram o processo de Paulo Bernardo para São Paulo.

Em julho de 2016, o Supremo mandou os familiares de Eduardo Cunha se haverem com Sergio Moro em Curitiba, preservando o então deputado federal em Brasília. Cunha só perdeu o foro quando perdeu o mandato. E aí foi preso – por ordem do juiz de primeira instância.

Como encaixar, nesse percurso jurisprudencial, a decisão da 2ª Turma do Supremo mantendo o inquérito de Sarney (hoje sem prerrogativa de foro) junto aos dos senadores Renan Calheiros e Romero Jucá? Será virada jurisprudencial ou exceção à tendência anterior?

O argumento vencedor, contra a posição do relator Fachin, foi o de que as investigações contra Sarney estavam diretamente ligadas àquelas empreendidas contra Renan e Jucá.  Mas qual a diferença, então, com relação à investigação contra a senadora Gleisi Hoffman? E a investigação contra Eduardo Cunha, não estava ligada àquela de seus familiares?

É difícil identificar o quê, no caso Sarney, o diferencia daqueles casos recentes, e ligados também à Operação Lava Jato, em que a decisão foi pelo desmembramento.

Se o critério é “conveniência do processo”, qual conveniência se privilegia em cada decisão?

No momento em que o país discute a legitimidade do foro privilegiado, o mínimo que se pode esperar do Supremo é a fixação de regras claras e estáveis para aqueles que, isoladamente, não têm o privilégio. Aglutinar por conexão ou separar por racionalidade e economia processual não podem ocorrer ao sabor do momento. Especialmente porque autoridades, via de regra, pertencem ao universo da política. E há sempre a ameaça de que a política possa influenciar uma decisão como essas. Uma jurisprudência clara protege os investigados, mas também protege o próprio tribunal.

Além disso, se o Supremo não consegue se posicionar de forma uniforme diante da interpretação da norma de extensão do foro, não cumpre sua função de órgão de cúpula do Judiciário. Sinaliza mal para os demais tribunais do país, que também se defrontam com estas questões em relação às suas próprias autoridades: prefeitos, deputados estaduais, juízes e promotores, por exemplo. Também quanto a isso, a imprevisibilidade do Supremo corre o risco de contaminar todo o Judiciário.

Silvana Batini – professora da FGV Direito Rio

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