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“Os governos passam, o Iphan fica”, diz Kátia Bogéa


Em novembro do ano passado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) viu-se no centro de uma polêmica que culminou com a saída de dois ministros do governo Temer. O órgão negara licença para a construção do espigão La Vue, na Ladeira da Barra, em Salvador. Tempos depois, o então ministro da Cultura, Marcelo Calero, se demitiu. E acusou o então ministro da secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, de pressioná-lo para fazer o Iphan mudar de posição. A crise de agravou, e Geddel também deixou o governo.

— A decisão técnica prevaleceu — diz a historiadora sergipana Kátia Bogéa, que serviu no órgão por 34 anos, se aposentou em outubro de 2015 e assumiu sua presidência oito meses depois.

Na sexta-feira passada, o Iphan completou 80 anos. Criado para preservar o patrimônio do Brasil, numa época em que a onda de desenvolvimento já era vista como ameça a conjuntos arquitetônicos importantes, o órgão teve entre seus idealizadores um grupo de intelectuais capitaneado por Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Para Kátia, o Iphan se tornou um patrimônio do Brasil e é valorizado pela sociedade “por fazer muito, com muito pouco”.

O Iphan acaba de completar 80 anos. A senhora acredita que a relação dos brasileiros com seu patrimônio mudou neste período?

Muito. Hoje a população brasileira compreende o sentido de patrimônio. O Iphan foi criado em 1937 graças à ação de intelectuais como Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. O Brasil tinha um patrimônio riquíssimo em perigo. Esses homens tiveram a grandeza de perceber a necessidade de se proteger o passado para ter o futuro. E deixaram um legado para as futuras gerações. Nós somos, hoje, a futura geração que recebeu esse legado. Nós, do presente, temos responsabilidade com os que ainda vão vir. A Constituição de 1988 diz que é dever de todos a proteção do patrimônio: União, estados, municípios e, principalmente, sociedade. Não existe preservação se a sociedade não estiver comprometida.

O caso do edifício La Vue, em Salvador, trouxe a público as pressões que o Iphan sofre. Como avalia o episódio?

O Iphan é um órgão do Estado Brasileiro, tanto que completa 80 anos. Os governos passam, o Iphan fica. Exatamente por isso a decisão técnica prevaleceu neste caso. Foi mais um problema político, porque o Iphan tem a sua postura técnica, a mesma desde sempre.

O Iphan muitas vezes é apontado como o órgão do “não”. Não permite, não autoriza. A senhora concorda?

Por que o Iphan só diz “não”? Vou te dar um exemplo. O Rio de Janeiro se tornou paisagem cultural da Humanidade. A partir disso, o Iphan é responsável pela fiscalização desse bem. Imagine que alguém queira colocar não sei quantas antenas perto do Cristo Redentor. Não é possível. Mas não é o Iphan que não deixa. Há toda uma legislação que foi construída de comum acordo com a sociedade. O Iphan segue as leis. Nós temos que proteger aquilo que é de todos. Principalmente no caso das cidades, temos que proteger o que as qualifica. A grande riqueza do Brasil é a sua diversidade cultural, presente nos centros urbanos tombados. É o nosso grande ativo que cabe ao Iphan proteger. Não somos contra o desenvolvimento, o progresso, mas precisamos guardar as nossas referências.

Quais são as principais demandas do Iphan hoje?

O Iphan é o órgão responsável pela saída de obras de arte do país; participa do licenciamento ambiental de obras; cuida de 450 mil imóveis em 87 sítios urbanos tombados. Qualquer intervenção nesses imóveis, seja uma simples pintura, precisa ser autorizada pelo Iphan, que analisa o projeto e depois acompanha a execução. O Iphan tem a responsabilidade também do patrimônio imaterial, do patrimônio ferroviário. Só o ferroviário está distribuído por 1,2 mil municípios. Oferecemos um mestrado profissional porque o técnico que vai trabalhar com preservação precisa de uma capacitação específica. Temos uma escola de gestão e governo, em parceria com a Unesco, que é o Centro Lucio Costa. O órgão tem 27 superintendências, 26 escritórios técnicos, dois parques históricos naturais e cinco unidades especiais em todo o Brasil. O Sítio Roberto Burle Marx, aqui no Rio, guarda a maior coleção botânica da América Latina e é responsabilidade do Iphan. O Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular e o Paço Imperial também são do Iphan. Somos o órgão que cuida do patrimônio genético brasileiro, damos pareceres para laboratórios e indústria farmacêutica. E para cuidar de tudo isso, e é muita coisa, nós temos 696 funcionários. Nós não nos consideramos servidores públicos, somos ativistas. Nós lutamos por uma causa e a nossa causa é o patrimônio. Hoje, acho que o Iphan já é um patrimônio do Brasil.

Como fica a atuação do Iphan nesta conjuntura de crise e teto de gastos? E o PAC das Cidades Históricas?

Já entregamos 20 obras e temos 67 em execução de um total de 425. A maioria das cidades que ingressou no programa não tinha projetos. Tanto projetos quanto obras são complexos. Temos hoje um problema sério, precisamos correr para capacitar pessoas. São poucos os restauradores no país. Mesmo assim, neste ano vamos entregar cerca de 60 obras. O Iphan faz muito com muito pouco. Por isso a sociedade respeita o órgão. O PAC também previa uma linha de crédito para imóveis privados tombados que não saiu do papel. Porque o imóvel é seu e você tem a obrigação de mantê-lo em boas condições, mas o ônus é só seu.

A Pampulha foi o último bem brasileiro a virar Patrimônio da Humanidade. Qual o próximo candidato?

Neste ano, vamos apresentar o Valongo. No ano que vem, estamos fechando a reapresentação de Paraty, que é uma candidatura de categoria mista, de patrimônio cultural e natural. Depois, vamos nos debruçar na elaboração da candidatura do Sítio Burle Marx. Para alguns países, a questão do patrimônio mundial é estratégica. O México tem um órgão só disso. Diferentemente de um tombamento nacional, o reconhecimento internacional faz com que o povo se comprometa com todo o mundo a proteger esse bem.

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